A anexação da Crimeia pela Rússia em 2014 provou, por um lado, qual é a interpretação histórica de Putin acerca da mãe-Rússia e criou, por outro, uma ilusão ocidental sobre o que o líder russo estaria disposto a fazer para ver concretizada essa interpretação no moderno e, pensava-se, civilizado século XXI. Em 2022, essa ilusão provou-se fatal.

Acreditou-se, erradamente, que uma invasão à escala do que vimos em fevereiro de 2022 seria tão imprudente da parte da Rússia, que só uma rutura total das faculdades mentais de Putin o faria correr o risco de isolar o seu país do resto do mundo. Este tipo de previsão é normal e aceitável num contexto democrático, como o ocidental, em que é obrigatória uma relação entre Estado e sociedade. É desta relação que brota um conjunto de caraterísticas que nos são muito próprias: liberdade de expressão, acesso à informação, participação na vida política, conhecimento acerca das opções do país, transparência ao nível da partilha dessas opções. Este não é o cenário natural na Rússia de Putin, onde quem governa não tem de prestar contas a quem é governado e, por isso mesmo, pode correr todos e quaisquer riscos em nome da sua própria vontade. Por outras palavras, o que o Ocidente não equacionou antes de fevereiro de 2022 foi: quem é que, dentro da Rússia, se vai aborrecer com o Presidente Putin caso uma invasão à Ucrânia em larga escala coloque todos os russos numa situação de instabilidade e isolamento? A resposta é: ninguém.

Da inexistência desta relação Estado-sociedade na Rússia deriva um quadro de impunidade perigoso, que por seu turno tem vindo a conferir a Putin total liberdade para agir sob a égide do seu projeto revisionista. Já o vimos diversas vezes desde 1999-2000, na Geórgia, por exemplo, e na própria Ucrânia. Nessa matéria, o Ocidente não pode dizer-se espantado ou traído. Porque, se a liderança de Boris Ieltsin alimentou esperanças para uma possível e tentativa democratização da Rússia, a chegada de Putin ao poder desnudou por completo a sua leitura sobre o fim do império septuagenário que foi a União Soviética: “A maior catástrofe do século XX.”

Claramente, esta leitura anunciava uma predisposição imperialista saudosa em Putin que, trazida para os dias de hoje, justifica que o líder russo se tenha comparado com Pedro, o Grande num paralelismo histórico que estabeleceu entre a conquista de territórios pelo Czar do século XVII e a invasão russa da Ucrânia por ele próprio orquestrada em 2022. Esta invasão, como a morte de Alexei Navalny muito recentemente, provam que esta leitura Putinista da História não tende a moderar-se, mas a agravar-se.

Alguns países e sociedades estão mais familiarizados com as leis deste Putinismo e com a ameaça russa, porque esta é sua vizinha ou porque outrora já lhes bateu à porta. E este é um dos indicadores que explica parte da ingenuidade ocidental. O desconhecimento histórico sobre um passado relativamente recente (um século apenas) é o único elemento que pode ajudar a compreender alguns resultados preocupantes de um estudo realizado pelo European Council on Foreign Relations (ECFR) em janeiro de 2024. Foram inquiridas 17023 pessoas em 12 países europeus – Alemanha, Áustria, Espanha, França, Grécia, Hungria, Itália, Países Baixos, Polónia, Portugal, Roménia e Suécia – acerca do conflito russo-ucraniano e do futuro dos dois países.

À pergunta Qual das seguintes opções reflete melhor a sua opinião sobre o que a Europa deveria fazer relativamente à guerra na Ucrânia de forma mais ampla?, nenhum dos países registou pelo menos 50 ou mais pontos percentuais na resposta A Europa deveria apoiar a Ucrânia na recuperação dos territórios ocupados pela Rússia. Numa lógica concordante, em 7 destes 12 países a resposta (à mesma pergunta) A Europa deveria pressionar a Ucrânia a negociar um acordo de paz com a Rússia recolheu mais de 40% dos votos. No caso húngaro, sem surpresa, esta percentagem é de 64%. Portugal e a Polónia são os últimos da tabela, com 23,3% e 23% respetivamente.

O mesmo estudo revela que apenas 10% dos inquiridos crê que a Ucrânia pode ganhar esta guerra. E, apesar de os que acham que a Rússia vencerá (19,5%) estarem longe de ser uma maioria, outros 37,2% acredita que o conflito resultará num Acordo de Compromisso entre as duas partes. E porque é que isso é igualmente preocupante? Porque esse Compromisso implicará sempre cedências territoriais da Ucrânia para a Rússia. Esse não seria um acordo que pudesse configurar um caminho verdadeiro para a paz, mas apenas um caminho para o alastramento do apetite territorial do líder russo.

Países como os três Bálticos ou a Polónia sabem-no bem. Ao longo destes 2 anos de guerra, foram múltiplos os alertas de políticos e representantes nestes países acerca da ameaça russa à sua segurança e das suas populações. Vários foram os momentos de tensão entre o regime russo e os regimes de alguns países do antigo Bloco Soviético, de que são exemplo o lituano e o polaco. Por razões de proximidade territorial e de memória histórica, estes países temem especialmente ser os próximos alvos de Putin. E, feitas as contas à coragem irresponsável de Putin para praticar o mal, lituanos e polacos, entre outros, têm razão no seu receio.

Já estivemos mais unidos, na Europa e no Ocidente, acerca da necessidade impreterível de proteger não apenas os ucranianos, mas todos os povos europeus do imperialismo e do revisionismo russos. Quando a guerra eclodiu, estávamos todos mais alerta para os perigos desse imperialismo e desse revisionismo. Agora, volvidos 2 anos, há um desligamento social inequívoco face à guerra e à causa ucraniana. De repente, uma parte considerável dos europeus acha aceitável encontrar uma solução para a paz que satisfaça, pelo menos parcialmente, os desejos injustificáveis de um país que não compreende que a História se faz para a frente e não para trás.

O risco do projeto revisionista de Putin não é ucraniano, lituano, polaco, estónio ou búlgaro: é europeu. Começar por correr esse risco na Crimeia, em 2014, resultou numa “operação militar especial”, em 2022. Permitir que este comportamento vingue e que a História ande para trás colocar-nos-á a todos na pele dos ucranianos que agora pedem ajuda militar, material e logística. É por isso que essa ajuda não pode esgotar-se. Porque não estamos só a defender um povo de uma disputa territorial injustificada: esta é uma guerra do bem contra o mal.

Compartilhar

Leave A Reply

Exit mobile version