Kremlin ouviu Macron a querer enviar tropas ocidentais para a Ucrânia, depois Cameron a dar luz verde ao uso indiscriminado e sem restrições de armamento britânico pelo exército de Kiev e fartou-se

Em resposta às declarações de Emmanuel Macron, sobre o envio de tropas ocidentais para a Ucrânia e de David Cameron sobre Kiev utilizar o armamento britânico como entender, Valdimir Putin tomou medidas inéditas: o Kremlin anunciou pela primeira vez exercícios militares com bombas nucleares táticas.

A reação aos “comunicados provocadores e ameaças de alguns responsáveis do Ocidente em relação à Federação Russa” foi ainda acompanhada pela convocação do embaixador britânico na Rússia ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, onde foi avisado que a utilização de armas britânicas em solo russo será merecedora de ações de retaliação contra infraestruturas ou equipamentos militares do Reino Unido na Ucrânia ou noutro local.

“Os russos subiram a parada verbal com um pré-aviso de escalada, que consubstancia a passagem do teatro de operações local da Ucrânia para o teatro regional da Europa”, explica o major-general Agostinho Costa, que alerta que, se a ameaça do Kremlin se efetivar, há dois cenários em cima da mesa: “Um ataque contra britânicos em solo ucraniano que não será motivo para acionar o artigo 5.º ou, caso bem diferente, é o ataque ser lançado contra alvos britânicos, mas fora da Ucrânia. Aí entramos na III Guerra Mundial”.

Agostinho Costa explica que a doutrina militar russa é composta por diversos patamares e que Putin se está a preparar para a entrada no terceiro: o patamar do nuclear tático. O 1.º patamar passa pela “escalada sem confrontação direta como aconteceu até 24 de fevereiro”, explica, em que há infiltração de tropas e alguns movimentos hostis em que se pode enquadrar, por exemplo, a ocupação da Crimeia em 2014. O 2.º patamar é aquele que se iniciou a 24 de fevereiro, que passa pelo “conflito local que restringe a uma área limitada”, que tanto EUA como a Rússia têm tentado prolongar o máximo possível para desespero dos ucranianos.

Por fim, existe o 3.º patamar, o “patamar nuclear tático” em que o “teatro de operações se alarga, deixa de ser local e passa a ser regional, neste caso, na Europa e no Atlântico Norte”. O major-general realça que esta será também a fase em que se efetiva a “entrada de forças ocidentais no teatro de operações”.

“Há ainda mais um patamar, mas que não será utilizado. Quando o exército de uma das partes estiver praticamente todo morto ou incapaz de prosseguir, existe armamento nuclear preparado para ser automaticamente ativado em desespero”, esclarece o major-general Agostinho Costa.

Armas nucleares táticas e convencionais: o protocolo do Kremlin

Em fevereiro, o Financial Times teve acesso a documentos confidenciais russos em que estão descritas as circunstâncias em que o exército moscovita deve utilizar armas nucleares táticas e convencionais.

O jornal norte-americano analisou 29 ficheiros militares russos secretos elaborados entre 2008 e 2014 que incluem cenários para estratégias de guerra e os princípios operacionais para a utilização de armas nucleares.

De acordo com o que é descrito, o Kremlin está disposto a usar este tipo de armamento contra uma incursão inimiga em território russo ou em casos mais específicos, como a destruição de 20% dos submarinos estratégicos russos de mísseis balísticos, 30% dos submarinos de ataque com propulsão nuclear, três ou mais cruzadores, três aeródromos ou um ataque simultâneo aos centros de comando costeiro principal e de reserva. Um ataque contra Moscovo com mísseis britânicos Storm Shadow poderia ser considerado uma incursão inimiga em solo russo.

Quanto à utilização de bombas nucleares convencionais, explica o Financial Times que os documentos apontam que seriam as escolhidas perante uma combinação de factores em que as perdas sofridas pelas forças russas “levariam irrevogavelmente à sua incapacidade de impedir uma agressão inimiga importante” ou uma “situação crítica para a segurança do Estado da Rússia”.

Esta foi a primeira vez que o Ocidente teve acesso documentos como estes ou pelo menos que tenha sido tornado público. Depois de ver os documentos, Alexander Gabuev, diretor do Centro Carnegie Rússia-Eurásia, em Berlim, criado no fim da Guerra Fria para desencorajar o uso de armamento nuclear, reagiu assim: “Mostram que o limiar operacional para a utilização de armas nucleares é bastante baixo, se o resultado desejado não puder ser alcançado através de meios convencionais.”

Embora os ficheiros tenham mais de dez anos, os especialistas, contactados pelo Financial Times, afirmam que continuam a ser relevantes para a actual doutrina militar russa.

Bombas nucleares táticas

De modo simplista, a grande diferença entre as bombas nucleares táticas e as convencionais é o seu poder destrutivo, ou seja, têm menos quilotoneladas. Contudo, como alerta Agostinho Costa, esta pode ser uma definição enganadora. A 4 de agosto de 1945, os EUA lançaram a primeira bomba atómica, batizada como Little Boy, sobre Hiroshima. Tinha o equivalente a 15 quiltoneladas de TNT e dizimou grande parte da cidade japonesa. Hoje, uma bomba nuclear tática tem entre 5 a 50 quilotoneladas.

Como aponta o major-general Agostinho Costa, quer isto dizer que se uma bomba nuclear tática com apenas 5 quilotoneladas atingisse a estátua do Marquês de Pombal, em Lisboa, “toda a zona da baixa sofreria danos consideráveis” e “danos muito graves sentir-se-iam talvez num raio equivalente à distância até ao Saldanha”. Quanto à radiação, ainda que em níveis ligeiros, alcançaria Santarém, como mostra também o simulador Nuke Map.

Morreriam pelo menos 11.400 pessoas e mais de 33.300 ficaram feridas.

À esquerda, o raio de impacto da explosão de uma bomba nuclear tática com 5 quilotoneladas. À direita, o percurso que a radiação percorreria tendo em conta o vento desta terça-feira. (Fonte: Nuke Map)​​​​

Caso esta fosse uma bomba nuclear tática com 50 quilotoneladas, cerca de três vezes mais potente do que o Litlle Boy, os danos significativos ultrapassariam Alvalade. Num raio de cerca de três quilómetros tudo seria afetado pela onda choque e pela radiação termal que provocaria queimaduras de terceiro grau em questão de segundos. A radiação, tendo em conta o vento que se fez sentir esta terça-feira, chegaria até Proença-a-Nova, a 155 quilómetros de distância.

Morreriam pelo menos 59.400 pessoas e mais de 110.700 ficaram feridas.

À esquerda, o raio de impacto da explosão de uma bomba nuclear tática com 50 quilotoneladas. À direita, o percurso que a radiação percorreria tendo em conta o vento desta terça-feira. (Fonte: Nuke Map)​​​​

Mas porquê agora?

O major-general Agostinho Costa entende que “não podemos desligar toda esta guerra verbal do momento que estamos a viver”, lembrando que, só esta semana, houve a tomada de posse de Putin, ataques com drones ucranianos nos portos da Crimeia, surgiu um novo modelo de drone ucraniano e “espera-se ainda um ataque ucraniano contra a Ponte de Kerch”.

Para além disto, “dentro de pouco tempo chegam os F-16 e vamos ver que tipo de adaptações trarão, visto que algumas têm capacidade de lançar armas nucleares”, lembra o comentador da CNN Portugal, referindo, no entanto, que “David Cameron foi demasiado ousado”. “Um ministro dos Negócios Estrangeiros não deve fazer declarações gratuitas”, explica, considerando que o responsável “devia ter medido as palavras, porque assumiu que o armamento britânico pode ser usado em profundidade e isso é o que os russos mais temem”.

“Se a Ucrânia empregar mísseis Storm Shadow para atacar Belgorod ou embarcações russas no Mar Negro há uma mudança de paradigma e é espectável que os militares russos respondam tendo os britânicos sediados na Ucrânia como alvo”, diz Agostinho Costa, lembrando o que aconteceu em janeiro, quando a Rússia bombardeou um hotel em Kharkiv, onde se encontravam conselheiros militares franceses.

O comentador da CNN Portugal entende que o as alegações do Kremlin “surtiram efeito num enquadramento psicológico e comunicacional”. “A Rússia fez com que todos viessem rejeitar publicamente uma escalada”. Todos menos um: a Alemanha. Agostinho Costa realça que “a única exceção foram mesmo os alemães”.

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