Vários políticos aspirantes norte-americanos passaram começaram por lançar um livro de memórias ou uma autobiografia antes de darem o pretendido salto. Alguns com sucesso: em 2008, o então senador Barack Obama lançou um aclamado ensaio, que mostrou a sua mensagem vencedora de “esperança”; em 1956, um jovem John F. Kennedy publicou o modelo dos livros de campanha, com o seu autor a receber um Pulitzer.

Mas a outros as obras não ajudaram. Em 2023, o governador republicano Ron DeSantis – que na altura era visto como sucessor de Donald Trump à frente dos conservadores – lançou uma esquecível biografia, um reflexo de como a sua campanha se acabou por despenhar no início do ano.

A governadora republicana do estado rural do Dakota do Sul, a ultraconservadora Kristi Noem, tornou-se a ‘vítima’ mais recente, depois de seguir a receita e lançar a sua candidatura informal para ser a escolhida de Donald Trump para sua vice-presidente. Isto, claro, se ele vencer as eleições presidenciais de novembro frente a Joe Biden (que também escreveu uma biografia antes da sua campanha, em 2007).

O livro de Kristi Noem, “No Going Back: The Truth on What’s Wrong with Politics and How We Move America Forward”, publicado este mês e cujos detalhes foram dados a conhecer em abril pelo The Guardian, ficará para a história das biografias políticas norte-americanas. Mas devido a razões muito pouco políticas.

No livro, Noem conta – detalhadamente – como decidiu matar o seu braco alemão de pêlo duro de 14 meses, Cricket, porque a cachorra não aceitava ordens, estragou uma caça e era “a imagem da pura felicidade”.

Scott Olson/Getty Images

Tentar resumir os macabros detalhes com que Noem descreve a morte de Cricket torna-se uma tarefa árdua, já que a governadora ocupa várias páginas a insultar o animal, que, segundo ela, “tinha uma personalidade agressiva”. Num incidente, a cadela “perdeu a cabeça de excitação, perseguindo os pássaros e a viver o momento da vida dela”. “Eu odiava aquele cão”, escreve.

Noem revela como, há cerca de 20 anos, matou Cricket após uma caçada em que ela se revelou “mal treinada”, e como depois a enterrou numa cova, para, mais tarde, matar da mesma forma uma cabra que era “mal cheirosa”, “nojenta”, “má” e que “adorava perseguir” os filhos da governadora. O objetivo do relato era demonstrar a força de caráter da aspirante a vice-presidente, uma imagem da realidade dura do Dakota do Sul e da necessidade de fazer tudo o que é “difícil, sujo e feio” para resolver algo.

Mas há mais. Noutro excerto, critica o atual Presidente, Joe Biden, por não mandar abater o seu próprio cão, Commander, um pastor alemão que ganhou notoriedade por morder agentes dos serviços secretos, garantindo que mataria o cão caso chegasse à Casa Branca. “Commander, diz olá ao Cricket”, agoirou.

A polémica já terá feito a governadora perceber que há várias formas de afastar um eleitorado, e matar um cão que aparentava ser feliz é certamente uma delas. As reações ao livro valeram-lhe várias condenações: nas redes sociais, no Congresso, nos órgãos de comunicação, de organizações não governamentais e, até, do seu ídolo político.

Segundo a revista Rolling Stone, Donald Trump terá insultado em privado a governadora do Dakota do Sul, por matar a sua cadela e questionando os seus atributos políticos como possível vice-presidente. Publicamente, o antigo Presidente e candidato pelo Partido Republicano a voltar à Casa Branca admitiu que Noem passou “por uns dias difíceis”.

Curiosamente, após finalizar a história sobre a morte da cadela, a própria Kristi Noem remata com uma frase fatídica: “Se eu fosse uma política melhor, não teria contado a história aqui.”

BRENDAN SMIALOWSKI

Pressão das críticas começa a apertar

Desde a confissão, a figura republicana tem tentado desdobrar-se para atender à quantidade de entrevistas pedidas, nas quais tem sido questionada pelo canicídio de Cricket e por possíveis abusos de animais – e não, como esperava, para falar das suas posições políticas.

Noem justificou em várias entrevistas que matou Cricket porque esta representava um risco para a sua família. E, no programa “Face The Nation”, da CBS News, reiterou que tem uma querela com o cão de Biden. “Ele atacou 24 agentes. Quantas pessoas têm de ser atacadas e ficar gravemente feridas até se tomar uma decisão sobre o cão e o que fazer com ele?”, questionou, sugerindo mais uma vez que o Presidente devia abater o animal.

Contudo, numa recente entrevista para a Fox Business – um canal conhecido pelo seu declarado apoio a políticos republicanos -, Noem pareceu perder a paciência com a imprensa. Na passada terça-feira, depois de o jornalista insistir em perguntar-lhe sobre as suas chances de ser escolhida por Trump para ser sua hipotética vice-presidente, a governadora disse que a entrevista era “ridícula” e exigiu que fosse mudado o assunto.

Do lado democrata, as críticas não são surpreendentes, ainda para mais considerando que a grande maioria das associações de direitos animais se opõe em muitas matérias às posições dos republicanos. Mas nem os conservadores se contiveram em atirar farpas à governadora.

Nicole Malliotakis, congressista por Nova Iorque, conhecida por levar o cão para o edifício do Capitólio, disse que o caso não abona a favor de Noem. “A pior parte é que não foi um ataque externo. Ela voluntariou essa informação”, respondeu ao Politico. E Meghan McCain, uma comentadora e filha do antigo senador John McCain, escreveu na rede social X (antigo Twitter) que “pode recuperar-se muita coisa na política, mas não de matar um cão”.

“Boa sorte com essa escolha de VP [vice-presidente], senhora”, disse.

O encontro de Schrödinger com Kim Jong-un

Mas não há apenas histórias chocantes no livro de Noem. Há também histórias falsas.

Uns capítulos mais à frente e saltamos para o tempo da governadora como congressista única do estado do Dakota do Sul, cargo que ocupou entre 2011 e 2019, antes de regressar de Washington D.C. para o seu estado. Noem escreve que, quando era membro do comité da Câmara dos Representantes para os Serviços Armados, teve oportunidade de “viajar para vários países e conhecer líderes mundiais”.

“Lembro-me de conhecer o ditador norte-coreano, Kim Jong-un. Estou certa que ele me subestimou, não tendo a mínima ideia sobre a minha experiência com pequenos tiranos (afinal, eu tinha sido catequista). Lidar com líderes estrangeiros exige resiliência, preparação e determinação”, recorda.

Não existem quaisquer provas que o encontro tenha acontecido. Tanto o Congresso como Pyongyang desmentiram. Noem fez uma viagem à China em 2014 pelo comité, mas Kim Jong-un apenas saiu da Coreia do Norte pela primeira vez em 2018.

Mais uma vez questionada sobre os conteúdos da história, já depois de vários órgãos de comunicação terem feito o ‘fact-checking’ à viagem e ao suposto encontro, Noem esquivou-se à resposta, disse que era uma “anedota” e não respondeu diretamente se tinha ou não conversado com Kim Jong-un.

Mas a falsidade da história pareceu ter sido admitida pela própria editora e por Noem. A Center Street Publishing, que se especializa em publicar livros de ideologia de extrema-direita e ultraconservadora, confirmou, em comunicado, que “a pedido da governadora Noem, vai remover a passagem sobre Kim Jong-un do seu livro, após a reimpressão da versão impressa e assim que for tecnicamente possível nas edições de áudio e ebook”.

E a política esclareceu, à CBS News, que houve um lapso em algumas passagens e algumas foram editadas, mas recusou que isso significasse uma retração.

Kim Jong-un não é o único líder a ser colocado – e possivelmente inventado – nas travessias da governadora. Kristi Noem também conta como chegou a cancelar uma reunião com o presidente Emmanuel Macron, devido a comentários que o líder francês fez sobre a ofensiva israelita na Faixa de Gaza, mas o Eliseu negou que tenha existido qualquer convite à então congressista no âmbito de alguma atividade diplomática.

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