Olhe que eu não vou dar-lhe nenhuma entrevista”, advertira Eduardo Fontes ao telefone, num dos vários contactos entre Lisboa e East Providence. “Mas está disposto a conversar comigo?”, insisti. “Certamente. E terei muito gosto em recebê-lo em minha casa”. De permeio, trocámos livros: sabedor de que o tema lhe interessaria, enviei-lhe o meu “Quem Mandou Matar Amílcar Cabral?”, a que ele retribuiu com o seu “Guia de Marcha. Notas da Memória”, uma edição não comercial feita na Lousã, de três centenas de exemplares para familiares e amigos.

Aliás, a primeira coisa que me disse, mal abriu a porta de sua casa, foi que não gostara nada de uma coisa no livro. E que foi? – indaguei com o olhar, preocupado. “Quando fala do Tarrafal, diz sempre que era um campo de concentração. Isso não é verdade e é injusto” – protestou, desapontado. Para começar a conversa, não estava nada mal…

Corredor que servia as celas da cadeia do Tarrafal, que Eduardo Fontes dirigiu durante sete anos

D.R.

Com 86 anos de idade, Eduardo Fontes nunca fora abordado por nenhum jornalista curioso. Desconfiado, não parecia nada interessado em recordar coisas que poderiam ser consideradas menos boas de uma longa carreira de funcionário ultramarino. Prometi que iria passar a chamar ao Tarrafal Centro de Trabalho, que era, em bom rigor, o seu verdadeiro nome. Promessa aceite, reiterou que não iria dar nenhuma entrevista. Claro, tranquilizei-o, só quero conversar para um trabalho que estou a preparar sobre o campo de trabalho. “Mas porquê este seu interesse?” – quis saber, com ar acossado. Contei-lhe do meu gosto pela memória e pela história. Que apenas me movia uma imensa curiosidade, desde que, em Outubro passado, num colóquio na Assembleia da República, alguém afiançara que o último director do Tarrafal ainda estava vivo. Para demonstrar a minha inteira boa-fé, pu-lo a par de algumas pesquisas que fizera. Descobrira, por exemplo, que a PIDE vigiara os seus passos no Tarrafal. De uma sala contígua, começaram a surgir os rostos curiosos de uma, duas, três filhas, que encorajei ao diálogo. Mais esperançado, disse que era portador de mensagens de dois ex-presos. Pedi-lhe para as ler. Ouviu-as em profundo silêncio e crescente emoção. Nestas andanças, já tinham passado três horas. E outras iriam passar, porque o muro da desconfiança voltou a erguer-se quando pedi autorização para tomar notas no meu caderno. “Mas notas para quê, se é só uma conversa?”

Não me vou alongar com mais pormenores de bastidores. Eduardo Fontes acabou por me convidar para almoçar no dia seguinte. Escolheu o restaurante açoriano O Dinis, onde partilhámos um Porta da Ravessa branco e umas simpáticas amêijoas à Bulhão Pato. Depois da bica, voltámos à sua casa. Já tranquilo e descontraído, abriu a memória e o coração, ao mesmo tempo que ouvíamos na rádio o relato do Porto-Manchester. Aceitou responder a um cerrado questionário de quatro ex-prisioneiros e só não permitiu ser fotografado. A viver há mais de trinta anos dos EUA, continua a pensar e a viver em português. Segue diariamente a RTP Internacional, chegou a assinar o Expresso e lê o “Portuguese Times”, onde colabora. As férias de Verão são numa casa da Damaia. Se fala crioulo com a mulher, com os filhos é em português e lamenta não o fazer com os netos. De Cabo Verde, guarda rancor. Nunca mais lá foi. E não perdoa às autoridades da sua terra, que esperaram pelo último dia de 1980 para o declarar “inimigo do povo” e confiscar sem contrapartida todos os seus escassos bens imóveis. Jamais equacionou pedir a nacionalidade cabo-verdiana. Bastam-lhe a portuguesa e a americana. Mas é com gosto que recebe, em casa, a sobrinha Cristina Fontes, a influente ministra da Defesa de Cabo Verde, e o marido Tony Lima, embaixador na ONU. Nunca se cruzou com nenhum dos presos de que foi carcereiro. “Caluniaram-me, mas já lhes perdoei. Terei a minha mão estendida a qualquer um que me queira cumprimentar de mente limpa”. Rígido e escrupuloso, faz questão de cumprir os seus direitos e deveres. Como o de votar. “Como foi nas presidenciais?”, pergunto, a medo. “Cavaco”. “Eu quero saber é aqui…” – insisto, com receio de forçar. “Aqui?”, espanta-se, com um sorriso largo. “Obama, claro!”

Os irmãos Vicente e Justino Pinto de Andrade pediram ao Expresso para fazer chegar a Eduardo Fontes uma mensagem. Ambos foram libertados do Tarrafal, onde estiveram quatro anos, a 1 de Maio de 1974. Militantes críticos do MPLA, viriam a ser presos após a independência de Angola, sob o regime de Agostinho Neto. Justino, de 61 anos, é o director da Faculdade de Economia e Gestão da Universidade Católica de Angola. Vicente, de 59, lecciona na mesma universidade e é candidato à Presidência da República. “Agradeço que transmita os meus cumprimentos ao sr. Eduardo Vieira Fontes”, disse ao Expresso, por email, Vicente Pinto de Andrade. “Diga-lhe, por favor, que não guardo nenhum ressentimento contra ele. Comecei a ter estima por ele no dia em que nos emprestou uns discos com mornas de Cabo Verde. E eu, neto de cabo-verdiano de Santo Antão, aprendi a gostar de mornas e coladeras ainda criança, numa família em que o peso da minha mãe foi muito grande. Reconciliei-me com ele nesse dia, esquecendo-me dos castigos que sofri por ter sido um pouco ‘rebelde’, tal como o meu irmão Justino”. Também por email, Justino Pinto de Andrade pediu para enviar “um abraço meu ao ‘Dadinho’ Vieira Fontes. Deve estar velho… Não guardo qualquer rancor ou sentimento negativo para com ele. Senti, ao longo daqueles anos, que ele tinha alguma simpatia por mim, sobretudo pela minha irreverência. Seria bom ainda nos vermos, em vida. A fase pior das nossas vidas já passou. Ele jogou o seu papel, eu o meu. No fundo, o regime de então condicionou-nos a todos. Diga ao ‘Dadinho’ Fontes que eu senti da parte dele, não obstante todo o papel que ele desempenhava, alguma amizade por mim e pelo meu irmão. Talvez porque fôssemos de uma família que ele conhecia e respeitava”.

Textos publicados no Expresso da edição do Expresso de 25 de Abril de 2009
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