É quase involuntária a tendência que coloca a guerra russo-ucraniana no epicentro do debate acerca da ameaça russa à ordem mundial liberal. Essa tendência não é falaciosa, tão pouco está em desconformidade com a realidade, quer temporal, quer geograficamente falando. De facto, é esta guerra o expoente máximo de uma demonstração real e palpável das intenções expansionistas e revisionistas de Vladimir Putin. O que essa tendência pode provocar, porém, é um desfoque perigoso relativamente a outros dos alvos do líder russo, nos quais, é preciso dizer, ele tem vindo a investir mais ou menos silenciosamente. Em apenas alguns segundos, um simples exercício de “zoom out” no mapa da Europa permite elencar vários destes alvos. Mas, importa também salientar, a wishlist de Putin não se cinge a este mapa, conforme veremos abaixo.

1.

Se começarmos pela História, nem sequer precisamos de nos afastar muito da Ucrânia para constatar que existe uma tentativa clara de recuperação de influência da nova Rússia sobre territórios da antiga União Soviética. As ex-repúblicas do Azerbaijão, Moldávia e Geórgia são os casos mais flagrantes, onde os denominados “conflitos congelados” têm vindo a conferir ao Kremlin uma justificação “plausível” para o não corte do cordão umbilical com estes países. Dizemos que estes conflitos estão congelados, porque, desde 1991, eles esperam por uma solução para o vazio deixado pelo colapso da União Soviética, em nacionalismo transformado. A existência de minorias (muitas delas russas) com reivindicações separatistas nestes países oferece à Rússia a razão perfeita para patrocinar a rebelião, grupos e milícias desordeiros, responsáveis por grandes focos de instabilidade política e social às portas da NATO.

2.

No Mar Báltico, onde o apetite geopolítico russo dispensa explicações, o Kremlin apostou recentemente numa estratégica provocadora, até hoje por clarificar com exatidão, de “revisão fronteiriça”. Por razões geográficas, naturalmente, a Suécia e os três Bálticos (Estónia, Letónia e Lituânia) são os mais preocupados com esta ideia mirabolante, que pode mesmo não passar de um teste aos níveis de ansiedade da Aliança Atlântica. Mesmo que assim seja – até porque, oficialmente, o Kremlin negou a intenção de ampliar a sua fronteira nestas águas – o Chefe de Estado Maior das Forças Armadas da Suécia, Micael Bydén, deixou um alerta importante sobre o perigoso desejo russo de chegar à ilha sueca de Gotland. Pode dizer-se que esta ilha está para o Báltico como os Açores estão para o Atlântico. Isto significa que, desde março de 2024, quando a Suécia se tornou um membro da NATO, a Aliança materializou uma importante aproximação a um conjunto de países-chave, pela Rússia considerados como “estrangeiro próximo” – uma designação que pressupõe que a Rússia deve ter uma relação especial, mais estreita, com países outrora pertencentes ao espaço soviético. Numa espécie de luta de galos, o Báltico inspira preocupação devido a este seu estatuto nevrálgico que junta simultaneamente potencial geoestratégico e sensibilidade histórica.

3.

Fora da Europa, um dos grandes objetivos da Rússia de Putin é, em rigor, uma herança da velha propaganda ideológica soviética: África. A influência e patrocínio soviéticos em países africanos e latino-americanos é, aliás, um pilar paradigmático da Guerra Fria. Nada de novo, portanto. Putin está, hoje, a tentar recuperar esse pilar, aprofundando e sedimentando cada vez mais a pegada russa no mundo africano, onde boa parte dos regimes políticos precisam do apoio de ator externo de peso. Ocupar o lugar desse ator de peso para alguns regimes em África serve os interesses da Rússia de duas formas em simultâneo: primeiro, ajudando a expandir o seu mercado comercial, a sua presença militar e o seu apoio diplomático além-fronteiras; segundo, ajudando a combater o mercado comercial, a presença militar e o apoio diplomático do Ocidente além-fronteiras.

4.

A ciberguerra não ocupa propriamente um lugar palpável no planisfério, querendo isto dizer que o seu potencial enquanto ameaça é ainda mais abrangente do que o das ameaças supramencionadas. A capacidade russa de destabilizar remotamente o Ocidente ficou especialmente famosa nas eleições norte-americanas de 2016, quando Donald Trump foi eleito Presidente dos Estados Unidos. Mas a ameaça cibernética russa é, na realidade, muito anterior a essa data, embora esteja a aprimorar-se cada vez mais: Estónia, 2007; Geórgia 2008; Ucrânia 2014; Alemanha 2015; Reino Unido e Estados Unidos 2016; França 2017; Coreia do Sul 2018; Polónia 2019; Roménia 2022. O leque de experiências é vasto para provar que a ciber-arma também é uma arma e, sobretudo, para demonstrar que a Rússia a usa, podemos dizer, com alguma frequência. Não existe, porém, tão vasta experiência no que concerne ao nosso conhecimento acerca do funcionamento doo “ciber-departamento” russo. Porquê? Porque a Rússia trabalha simultaneamente com grupos e especialistas oficiais e não oficiais, alguns deles mesmo ilegais (hackers), dificultando especialmente a tarefa preventiva do Ocidente, tanto para evitar os ataques, como para compreender e dominar as estratégicas dos seus autores.

5.

Provavelmente, a única ainda mais abrangente do que a anterior é a ameaça nuclear russa. Esta última, sem exceção, coloca em causa todas as coisas conforme as conhecemos, incluindo a vida humana. Nos últimos tempos, a Rússia tem sido particularmente insistente em matéria de chantagem nuclear cada vez que os planos não correm como previsto. Um dos exemplos mais recentes desse comportamento é a ideia de enviar tropas NATO para a Ucrânia, o que, evidentemente, assusta a liderança russa, conduzindo-a à necessidade de invocar o trunfo nuclear. A mesma liderança já confirmou ter tomado todas as decisões necessárias ao uso de armamento nuclear, caso a Aliança Atlântica envie recursos humanos para solo ucraniano. E, embora a Ucrânia tenda a considerar esta como uma estratégia de bluff do Kremlin, a verdade é que a Rússia é, em primeiro lugar, uma potência nuclear e, em segundo, é liderada por um homem que está disponível para iniciar um conflito desse cariz.

Todas estas ameaças dizem respeito a pessoas, países e regiões fora da Ucrânia. É, por isso, erróneo alimentar a retórica que ignora a vastidão do projeto revisionista russo, assim como os seus objetivos não estritamente relacionados com a Ucrânia. Nesta fase do tempo e do espaço, os interesses ucranianos são também os interesses de todos os europeus e, em última instância, os interesses de todos os amantes do mundo livre. Estes homens, estas mulheres e estas crianças – o povo ucraniano – não são a última linha deste mundo livre. Antes, são a sua linha da frente.

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