Tristeza, vergonha e uma profunda revolta é que se sente perante a decisão do Tribunal de Sintra sobre o caso de Claúdia Simões, a mulher que foi agredida brutalmente por um polícia numa paragem de autocarro da Amadora, perante a passividade de outros dois agentes, pelo facto de se ter esquecido do passe da filha, então com oito anos, e que foi depois espancada num carro-patrulha enquanto terá ouvido, na viatura da PSP, “grita agora, sua filha da puta, preta, macacos. Vocês são lixo, uma merda”, da boca do agente Carlos Canha.

Todo o julgamento foi uma sucessão de horrores, humilhações, preconceitos, desumanização, achincalhamento e violências por parte da juíza sobre a vítima das agressões, como já tinhaassinalado Paula Cardoso. Agora, o desfecho foi uma condenação da vítima e a ilibação do agressor, que foi apenas condenado por ter espancado outros dois cidadãos, também eles negros, testemunhas do caso que assistiam à cena na paragem do autocarro e que tentaram pará-la ou a filmaram. Foram sequestrados para a esquadra pelo mesmo Carlos Canha, que lhes deu socos e pontapés na cara porque, de acordo com a juíza, “quando descomprimiu, acabou por ser impulsivo”.

“Estávamos longe de imaginar que, depois do que fizeram à nossa mãe, no dia 19 de Janeiro de 2020, ela fosse retratada neste tribunal como selvagem, arrogante e exagerada, mesmo perante todas as evidências. A vítima não pode ser transformada em culpada”, afirmou uma das filhas de Cláudia Simões no final do julgamento.

O que aconteceu é muito mau.

Primeiro, pela desproporção do uso da força por parte da polícia, responsável pela nossa segurança. Nunca é demais lembrar que atribuímos à polícia a função de exercer, em nome do Estado, o monopólio do uso legítimo da força física. Por isso, quem tem esse poder está obrigado a utilizá-lo com o máximo critério de respeito pela lei, pela Constituição, pela adequação, pela proporcionalidade. Está obrigado, em suma, a conhecer e respeitar a lei, em vez de a violar grosseiramente. O que aconteceu naquele dia na paragem foi exatamente o oposto, como pode confirmar quem tenha visto os vídeos das agressões. Por outro lado, uma esquadra não devia ser um sítio onde nos sentimos seguros, em vez de um lugar onde somos vítimas de crimes?

Em segundo lugar, o caso é grave pelo racismo estrutural que revela e confirma. Se não fosse uma mulher negra, se não fosse numa carreira na Amadora, se não fosse uma mulher pobre, obviamente que Cláudia Simões não teria sido tratada como foi, mesmo que estivesse na exata circunstância de se ter esquecido do passe da filha. À violência da atuação somaram-se os insultos racistas contra “a preta” pelo agente Carlos Canha. Somou-se a normalização da violência pelo então diretor da PSP, Magina da Silva, que perante imagens de óbvia desproporção se apressou a declarar que não tinha visto “nada de anormal” e que desculpabilizou o racismo da polícia. Toda esta dimensão foi aliás inteiramente evacuada do processo e do julgamento.

Em terceiro lugar, este desfecho é grave pela evidente injustiça da Justiça. Como relata o Expresso, a juíza Catarina Pires considerou que “ninguém fez mal a Cláudia Simões; Cláudia Simões é que não pagou o bilhete que lhe cabia pagar, porque o esquecimento do passe da sua filha não era imputável à Vimeca, nem à Vimeca se impunha que estivesse ciente da sua existência, era imputável à mãe daquela menina, ainda criança”. Sobre o trauma da criança que viu a sua mãe ser espancada, declarou a juíza: “o choro da sua filha é à mãe que se deve”.

Sobre o processo, a juíza acusou Claúdia Simões de “se fazer passar por vítima” para “vir a obter uma choruda indemnização”, num processo promovido pelo “movimento” anti-racista. Além das humilhações infligidas a Cláudia Simões durante o julgamento, a sentença de Catarina Pires sancionou práticas de violência por parte das forças policiais, ignorou insultos racistas, acusou a vítima de má-fé, deslegitimou o movimento anti-racista e amplificou a violência racial que existe na nossa sociedade. Onde Claúdia Simões devia ter encontrado proteção, recebeu mais um conjunto de ofensas.

“Eu senti que ia morrer. Estava a defender a minha vida. Há vídeos disso. Fui castigada na via pública, levou-me no carro, fez o que quis e ainda me culpam?”, pergunta Cláudia Simões, no Público. E anunciou que vai recorrer desta sentença, que vai “nem que seja ao fim do mundo”. Devemos-lhe inequívoco apoio nesse processo. Cláudia Simões não está sozinha

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