No livro “A Liberdade do Drible”, Dinis Machado define o guarda-redes como alguém que tem uma variante peculiar de coragem: é uma “coragem suicidária”; eu diria que é uma coragem suicida ou heroica – depende do sucesso – porque aquela linha de golo está pintada na horizontal para os outros, sim, mas, para o guarda-redes, aquela linha é vertical, é uma queda no abismo; a linha de golo é um penhasco e ele joga 90 minutos com os pés mesmo à beirinha desse desfiladeiro, e de costas. É preciso um certo tipo de pessoa para aceitar esta pressão.

Falou-se ontem da coragem do Ronaldo para bater a segunda vez após o fracasso da primeira. Pois, pois: é essa a coragem de todos os dias do guarda-redes.

Ontem estava tão lixado com a equipa, Como é que podem jogar tão mal?, que nem sofri muito nos penáltis. Depois de tudo resolvido, sim, rebobinei a box, vi e emocionei-me, até porque me lembrei inevitavelmente dos tempos em que o meu sonho era ser como o Diogo Costa, salvar a equipa, a da escola, a da rua, a da faculdade, num desempate heroico de penáltis. Sonhei tantas mas tantas vezes com isto – mas nunca aconteceu, claro, até porque eu pensava que ser guarda-redes é só instinto. Mas não é. É trabalho. “Mato-me a trabalhar”, disse ontem o nosso homem.

Ser guarda-redes é estar sempre em contramão, é desafiar a sintonia do jogo; se o jogo está em AM, o Redes está em FM, está a captar outra antena, uma emissão que vem do futuro. Revejam agora mais a frio: o Diogo Costa estava noutro planeta mental, noutro tempo, estava dois segundos à frente na fita do tempo e por isso sabia onde os eslovenos iam meter a bola. O Redes não desafia apenas a física no movimento, também a desafia no tempo. É, garanto-vos, a melhor parte de ser guarda-redes: ele é a teoria da relatividade com pernas e personalidade jurídica; o possível e o impossível no espaço e no tempo são determinados por ele.

Este estatuto mágico vem da inteligência e do trabalho. Não é instinto, não é feitiço, não é macumba e xamãs, palavras de Ricardo ou toalhas de Eusébio; é, isso sim, muita inteligência emocional que sabe ler o corpo em movimento do adversário. Ouçam de novo o Diogo Costa: “olhei para o movimento do corpo deles”. É por isso que ele vem do futuro, ele detecta na linguagem corporal dos adversários aquilo que eles vão fazer. É génio, um génio trabalhado até à exaustão. Diogo Costa merece esta imersão na glória eterna. Daqui a vinte anos, eu e a minhas filhas falaremos desta noite, tal como eu falo da noite do Ricardo (2004) com o meu pai.

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